Roupas e acessórios são
como membros órfãos que tentam se ajustar às formas do nosso corpo. Tentam ser
adotadas. Tentam ser corpo. O boné do careca ajusta-se às dobras da nuca,
tentando, a todo custo, ser cabelo. A camiseta surrada do roqueiro, com a
estampa do Ratos de Porão, tenta ser pelugem, resguardando o jovem músico das
pancadas da guitarra elétrica. O tênis fuleiro da adolescente arriscar-se no
asfalto quente e nas poças d’água, pois almeja ser pé. A calça jeans da
funkeira quer ser pernas e bunda, assumindo as sinuosidades dos músculos. A
luva do goleiro chega antes naquela bola indefensável, sonhando jamais ser
descalçada pelo arqueiro-herói.
Quanto mais tempo
passamos com uma meia, ou um anel, ou uma pulseira, mais o objeto acredita que
faz parte de nós. Por isso, é tão difícil jogar fora aquela bermuda floral
descosturada. Ou aquela pochete de seis bolsos que você ganhou no Inimigo
Oculto da empresa. Ou aquele troço plástico de R$ 1,99 que te enforcava na
sétima série. Ou aquele short confortabilíssimo que você usava na aula de
Educação Física e só parou de vestir porque virou peneira. Ou aquela gravata que você comprou no casamento da prima e nunca mais desfez o nó. Ou aquele relógio Casio que
dizia ser à prova d’água e, na primeira prova, provou toda a água da piscina.
Tive um relógio desses,
presente de meu pai. Não tirava para nada. Um dia, a pulseira se rompeu no meio
de um baba. Despedaçou mesmo, sem chance de remendo, ou troca. “O único jeito”
— disse o relojoeiro na feira livre — “é trocar a caixa e eu não tenho a caixa original
desse relógio.”. Tive que ficar mais de
um ano com a marca branca do relógio Casio
que queria ser pulso. Foi aí que comecei a pensar nessas coisas. Comecei a entender
que esses trecos vão e as pessoas ficam. Também as pessoas vão embora um dia e talvez
fique em nossa memória apenas aquilo que elas queriam ser.
Não faço aqui, caro
leitor, nenhuma apologia. Nem ao apego excessivo, nem ao consumismo. Sei que
muitas roupas e objetos obsidiam os donos por serem filhas-únicas. Sei também
que outras sequer experimentam a sensação de tocar a pele do proprietário, pois
ficam congeladas em grandes caixas e armários à espera de um caridoso transplante
em campanhas do agasalho. Falando nisso, o Natal se avizinha. Que tal dar
chance pr’aquele casaco novinho tentar ser corpo, aplacando o frio de alguém?
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Foto: Georgio Rios |
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